Crônicas de uma Celepariana na Europa (2a. Parte)
Autora: Maria Alexandra V. C. da Cunha
Apesar deste ser o segundo episódio da série, cronologicamente é o primeiro porque passo a contar a viagem de ida para a Europa.
Para entender a história
* Sou funcionária da Celepar desde 1985
* Em 1989-90 obtive licença da empresa para cursar Mestrado
* De janeiro a junho de 1990 fui num programa de convênio do meu mestrado para Paris, onde cursei disciplinas na ESSEC - ÈCOLE SUPERIEUR DE SCIENCES ECONOMIQUES ET COMERCIALES
* Sou portuguesa, tenho família em Lisboa e em Amsterdam
Quando dos preparativos para a minha viagem, uma coisa eu tinha em comum com centenas de estudantes brasileiros no exterior - escassez de dinheiro. Para comprar a passagem pedi para a Cristina (agente de viagens, esposa do nosso colega Azevedo, de um profissionalismo impecável) o que de mais barato existisse. Falei para ela que se me amarrassem a uma asa de avião e me levassem para a Europa, por um preço módico, com certeza eu toparia. A Cristina sugeriu que eu gastasse um pouco mais, pelo menos uma companhia filiada à IATA era mais seguro, tinha volta garantida, etc. Fiquei irredutível na minha posição, queria a passagem mais barata que ela pudesse arrumar. Havia mais um complicador - todos os vôos para Paris depois do dia 2 de janeiro estavam lotados. Ela iria me encaixar em algum lugar, mas a chance de ainda conseguir um lugar barato era remota.
Em novembro ela me liga. Aparecera um vôo charter, da LanChile, por 800 e poucos dólares, passagem válida por um ano. Os detalhes eram que o vôo seria até Madri (eu ia para Paris) e só no dia 29 de dezembro. Eu teria que passar o dia 31 na Europa e minhas aulas só começariam dia 8 de Janeiro. Não era tão ruim, afinal tenho família em Portugal. Iria até Madri, pegaria um trem para Lisboa, passaria o ano lá e nos primeiros dias de janeiro pegaria um trem para Paris.
Tudo pronto, chegou a data da viagem. Fui para São Paulo (de ônibus para economizar), fui para o aeroporto, entrei no avião e descobri que aquela não seria a melhor das viagens. Bem que a Cristina tinha me avisado. Mas pelo preço que eu tinha pago... Era um 727, dos que fazem vôos domésticos aqui no Brasil. Como os bagageiros são muito pequenos, os passageiros tinham ocupado com pertences os espaços livres, todo o mundo tinha bagagem em baixo dos pés, não dava para se mexer, até no corredor estava difícil andar. A comissária estava enlouquecida, dizia que o avião não iria daquele jeito, falava com as pessoas, falava no microfone. O pessoal fingia que não escutava, ninguém queria voltar para o check-in, foi uma confusão dos diabos. Só assisti. Tinha posto todas as minhas coisas numa enorme de uma mochila que supunha estar no compartimento apropriado a ela. Para o caso de a perderem e enviarem para outro local que não o meu destino, tinha arrumado uma sacola de mão com uma muda quase completa de roupa. Só não tinha posto calça, porque como estava de jeans agüentaria até Lisboa, era só um dia e meio. A sacola era tão pequena que cabia na poltrona junto de mim e não incomodava ninguém.
Finalmente deram um jeito nas bagagens e lá vou eu rumo a Madri. Ao meu lado, duas velhinhas. Felizes e falantes, a mais nova devia andar pelos 75 anos. Estavam em viagem de férias. De seis em seis meses iam passear porque, segundo a mais nova, era melhor gastarem dinheiro com viagens para elas do que deixá-lo para os outros passearem. As duas adoraram o vinho na hora do jantar e mandaram vir várias vezes. Estavam cada vez mais felizes, e cada vez mais falantes. Somados a idade, o tremor das mãos, o vinho e um pouco de turbulência do avião, eu acabei levando um banho da quarta ou quinta taça da minha vizinha. Uma taça que tinha que estar cheia até à borda, e cujo conteúdo encharcou minha perna. Poderia ter sido na blusa, que eu tinha para trocar, mas pela lei de Murphy que nós de informática tão bem conhecemos, tinha que ser na calça, que empapou e imediatamente começou a cheirar. A solução foi ir ao banheiro, e tentar dar um jeito. Agora imagina ir num banheiro de avião, com todo aquele espaço, tirar a calça e lavar metade de uma perna tentando não molhar o resto. Eu só torcia para que o avião não caísse porque seria difícil a LanChile explicar para a minha família o que eu fazia de calças nas mãos na hora do acidente.
Voltei para a minha poltrona e além de continuar fedendo agora estava molhada, com o humor entrando em colapso. A sorte é que com toda a bebida que tinham tomado, minhas vizinhas desmaiaram até o destino e não me incomodaram mais.
Fora o cheiro de vinho, a partir daí deu tudo certo. Desci em Madri, peguei o trem que me levou até Lisboa. Poupo os detalhes do reencontro com a minha família, mas foi emocionante depois de 12 anos de Brasil. Família é ótima assim - com um oceano de distância. Não dá confusão, só saudades, e os reencontros são perfeitos.
A passagem de ano também foi tranqüila e àqueles que um dia estiverem em Lisboa no dia 31 de dezembro recomendo que vão até a parte antiga perto da meia-noite. Pode ser Alfama, Mouraria, Baixa, ou o Castelo (bairros de Lisboa), de preferência que arrumem vista para o Tejo. É que na passagem do ano os navios no porto, os do estaleiro, os pesqueiros, os cacilheiros (fazem Lisboa-Cacilhas, do outro lado do rio), todos os barcos, tocam as sirenes. É muito lindo ver o Tejo iluminado pela lua e escutar o som meio fantasmagórico dos navios.
Os dias passaram rápido em Lisboa. Foram dias de abastança gastronômica por que, modéstia à parte, como se come bem no meu país! Dia 6, uma sexta-feira, embarco no trem que me levará a Paris. Para honrar a tradição de comilança, minha avó me deu uma cesta de comida que poderia durar umas três viagens de 26 horas até Paris (para uma família) e aquela tinha sido feita só para mim.
Estou sozinha na cabine. O trem pára em Fátima e entra o estereótipo do português - baixinho, entroncado, moreno e de bigode. Emigrante em França, tinha vindo passar as festas e voltava para casa. Não entendia muito bem o que ele falava, era português da Beira (uma província), misturado com termos em francês. Uma certa hora ele se abaixa, põe a mão perto do chão, olha para mim sorrindo e diz: - A xôfagevemdevaixodovanco - Hã ? - Pergunto eu. - A xôfagevemdevaixodovanco - Desculpe, não entendi. - A xôfagevemdevaixodovanco - Ah... (não entendi nada mas sorri para ele, pelo menos parecia amistoso).
Daí a alguns minutos, senti meus pés esquentarem com o calor do aquecimento. Vinha debaixo da poltrona. E aí entendi o que o homenzinho dizia. A chauffage (aquecimento) vem de baixo do banco. Comecei a rir sozinha e ele me olhou com uma cara de "é doida, a rapariga", mas não falou nada. Cheguei em Paris ao anoitecer, domingo, na Gare de Austerlitz.
Deixei a bagagem na estação de trem, num bagageiro, e com uma sacolinha agora com uma muda completa de roupa, fui procurar lugar para dormir minha primeira noite em território francês.
Não adiantava ir até a escola porque domingo não haveria ninguém para me recepcionar. Já tinha sido avisada por uma amiga que tinha me dado um endereço de hotel, barato, decente, com indicações precisas de como lá chegar. Fiz tudo direitinho, o mapa era perfeito, mas quando cheguei lá, por volta das oito da noite, o hotel tinha fechado, mudado, não existia mais naquele lugar.
E agora? Eram oito horas da noite e eu perdida em Paris. Ainda bem que o meu lanche não tinha acabado, não precisava procurar restaurante.
Como sou prevenida, além do mapinha fornecido por minha amiga tinha levado mais nomes e telefones de hotéis. Mas enfrentei alguns problemas. Primeiro, não tinha moedas para usar um telefone público, tinha acabado de trocar o dinheiro e só tinha notas. Segundo, os parisienses não são exatamente amistosos com estrangeiros. E terceiro, quando finalmente consegui telefonar, não entendia nada do que se falava do outro lado da linha. Cadê o francês falado pelos professores da Aliança Francesa de Curitiba?
Inferno, acabei por desistir. Era impossível. Desliguei o telefone e fui andar, quem sabe passaria na frente de algum hotel com cara de barato.
Logo na outra esquina havia uma igreja, e pelo jeito a missa tinha acabado, o povo saía com cara de compenetrado. Vi uma senhora de idade conversando com um rapaz negro na porta. Fui até eles, disse que tinha acabado de chegar, me desculpei pelo meu francês (isto é uma dica, eles ficam mais amigáveis se a gente se declara ignorante) e expliquei o meu caso, pedindo se eles se importariam de telefonar para mim, ver se tinha vaga e pedir o endereço.
Os dois foram super amáveis. A senhora telefonou para dois ou três lugares, acertou tudo e depois de conversar com o rapaz (não entendi nada), disse que ele ia me acompanhar.
Fiquei meio desconfiada, os franceses têm fama de ser antipáticos e eu topava justo com dois simpáticos? Não teve jeito de sair de fininho, me levaram até ao metrô, a senhora foi embora e não consegui me livrar do moço. Ainda por cima quem estava com o endereço era ele, eu nem sabia onde ir. Pensei naquele ditado, (quando é inevitável...), mas mudei de pensamento, esse ditado não era adequado para a minha situação, credo!
O hotel era uma espécie de hotel para juventude, um albergue mais incrementado, maior e muito bonito, novo em folha. Quando entramos no saguão, o rapaz dirigiu-se à recepção, e ficou conversando com o recepcionista. Àquela hora, eu já sabia porque não o entendia muito bem, tínhamos conversado na viagem de metrô. Era estudante de medicina, vinha da Costa do Marfim e falava francês de um jeito diferente. Falam a mesma língua, mas com sotaque e algumas expressões diferentes. O recepcionista também era africano, e de vez em quando eles olhavam para mim e eu entendia alguma coisa da conversa animada deles - Brésil (Brasil), Tiers Monde (Terceiro Mundo), l'argent (dinheiro), e pouco mais.
Eles acertaram lá alguma coisa e o meu guarda-costas me disse que tinha conseguido que eu ficasse pela metade do preço, um desconto, mas que eu teria que sair sete horas da manhã do hotel, se haveria algum problema. Eu disse que não, que não tinha problema, mas perguntei porquê, eu podia pagar o preço normal (tinha visto os preços afixados, não era caro). Não, não que eu não me preocupasse, estava tudo certo, ele conhecia o recepcionista, também era da Costa do Marfim. Deu-me o seu telefone, pediu que eu ligasse se precisasse de qualquer coisa em Paris, e foi-se embora. Parece que foi assim, tchum-tchum, mas para entender tudo isso foram uns bons dez minutos, o francês deles é bem diferente e principalmente para mim, recém-chegada. A verdade é que sobrou uma sensação de que tenho cara de pobre, jeito de pobre, sei lá, alguma coisa de pobre, porque, mesmo não estando nadando em dinheiro, em nenhum momento tinha comentado o assunto e também o caso não era de miséria absoluta.
O quarto era novo, tinha banheiro com chuveiro (nem todos os lugares têm), uma vista bonita. Dormi um sono de quem tinha viajado 26 horas de trem. Antes das sete o telefone tocou, tomei café da manhã, e paguei. Em tempo - os franceses tomam café com leite em tigela, não em xícara, e não comem pão de manhã, só croissant, o que é meio esquisito para nós porque a massa é folhada e meio gordurosa, não combina com sete horas da manhã. Mas em Roma, sê romano, e ali nem tinha opção...
No metrô pensei na historia de ter pago só metade e concluí que pela pressa e ansiedade que o moço da recepção estava para que eu saísse logo, ele deve ter embolsado o meu dinheiro. Antes das sete devia ser para o gerente não chegar. Eu entrei e saí sem o responsável lá. É uma possibilidade, mas jamais saberei, nunca voltei lá para perguntar, claro.
Segunda-feira e nem acredito, estou indo para a escola, em Paris! Minha bagagem continua na estação, só vou buscá-la depois que estiver com a chave do meu apartamento.
Olho a agenda, está lá o nome de quem eu tenho que procurar - Mme Dessagne. Pego o metrô e desta vez saio dos muros de Paris, o campus fica em Cergy, nos arredores. A viagem demora cerca de quarenta minutos, e depois de um trecho (quando sai de Paris), o trem anda na superficie, dá para ir vendo a paisagem.
Chego em Cergy, e pergunto a um senhor onde é a escola. Ele me diz que não tem erro, é muito fácil, é um prédio novo, e apontando a direção diz tout droit (uma tradução literal seria sempre direito, ou seja, reto). Entendi droite, e seguindo na direção que ele apontou, virei à direita e entrei no prédio novo que supus ser o da escola. Fui na recepção e mostrei o nome, Mme Dessagne. Segundo andar. Subi no segundo andar. Mostrei o papel - Terceiro andar. Lá, voltar para o térreo. A recepcionista, muito simpática, volta a me enviar para o segundo andar. Não, não é lá, me mandam para o térreo, devo falar com a recepcionista. Eu parecia barata tonta. A recepcionista na entrada me reconhece e pergunta se sou estrangeira. Sim, então realmente devo ir no segundo andar. Subo no segundo andar. Não tem Mme Dessagne no segundo andar, me mandam para o primeiro, e de lá para o térreo. Volto para a recepcionista, já ficando um pouco irritada. Quando a moça me vê, de novo, ela me perguntou se eu queria ir na Préfecture (não é bem a nossa prefeitura, é mais uma polícia que cuida entre outras coisas dos vistos de estrangeiros).
- Lógico que não, quero ir na ESSEC - Ah bom, me responde ela, por que ali não é a ESSEC, é a Préfecture. O prédio da ESSEC é aquele (aponta um outro pela parede de vidro).
Como tenho passaporte europeu, nunca precisei ir na Préfecture. Mesmo assim, um dia no metrô (algumas semanas ou meses depois) a tal moça me reconheceu e me perguntou como estava indo o curso, e quase morri de vergonha.
A partir daí, não teve mais erro. Achei a Mme Dessagne, escolhi as disciplinas que iria cursar, e os horários. Conheci outros estrangeiros, o Jürgen, o Alexander e a Claudia (alemães), o David (canadense), o Pièrre (iugoslavo naturalizado canadense), o Otávio, o Chico, a Ana (brasileiros), revi a Célia, minha colega da FGV, e mais outros de quem lembro o rosto mas não mais os nomes. Peguei a chave do meu apartamento e fui buscar as minhas coisas na estação de trem.
À noite a Celinha já veterana de Paris (tinha chegado havia uma semana) foi comigo até a Torre Eiffel. Quem chegar em Paris, espere anoitecer para ver a Torre. Ela é ainda mais bonita toda iluminada. E a Torre Eiffel foi um desfecho perfeito para uma chegada no mínimo movimentada.
Dicas de viagem
* Confie nas dicas do seu agente de viagens
* Evite velhinhas, pelo menos maiores de 75 anos
* Ao arrumar a sacola "reserva", coloque uma muda completa de roupa
* Em caso de apuros, procure alguém na saída de uma igreja
* Em francês há uma grande diferença entre tout droit e droite.
Apesar deste ser o segundo episódio da série, cronologicamente é o primeiro porque passo a contar a viagem de ida para a Europa.
Para entender a história
* Sou funcionária da Celepar desde 1985
* Em 1989-90 obtive licença da empresa para cursar Mestrado
* De janeiro a junho de 1990 fui num programa de convênio do meu mestrado para Paris, onde cursei disciplinas na ESSEC - ÈCOLE SUPERIEUR DE SCIENCES ECONOMIQUES ET COMERCIALES
* Sou portuguesa, tenho família em Lisboa e em Amsterdam
Quando dos preparativos para a minha viagem, uma coisa eu tinha em comum com centenas de estudantes brasileiros no exterior - escassez de dinheiro. Para comprar a passagem pedi para a Cristina (agente de viagens, esposa do nosso colega Azevedo, de um profissionalismo impecável) o que de mais barato existisse. Falei para ela que se me amarrassem a uma asa de avião e me levassem para a Europa, por um preço módico, com certeza eu toparia. A Cristina sugeriu que eu gastasse um pouco mais, pelo menos uma companhia filiada à IATA era mais seguro, tinha volta garantida, etc. Fiquei irredutível na minha posição, queria a passagem mais barata que ela pudesse arrumar. Havia mais um complicador - todos os vôos para Paris depois do dia 2 de janeiro estavam lotados. Ela iria me encaixar em algum lugar, mas a chance de ainda conseguir um lugar barato era remota.
Em novembro ela me liga. Aparecera um vôo charter, da LanChile, por 800 e poucos dólares, passagem válida por um ano. Os detalhes eram que o vôo seria até Madri (eu ia para Paris) e só no dia 29 de dezembro. Eu teria que passar o dia 31 na Europa e minhas aulas só começariam dia 8 de Janeiro. Não era tão ruim, afinal tenho família em Portugal. Iria até Madri, pegaria um trem para Lisboa, passaria o ano lá e nos primeiros dias de janeiro pegaria um trem para Paris.
Tudo pronto, chegou a data da viagem. Fui para São Paulo (de ônibus para economizar), fui para o aeroporto, entrei no avião e descobri que aquela não seria a melhor das viagens. Bem que a Cristina tinha me avisado. Mas pelo preço que eu tinha pago... Era um 727, dos que fazem vôos domésticos aqui no Brasil. Como os bagageiros são muito pequenos, os passageiros tinham ocupado com pertences os espaços livres, todo o mundo tinha bagagem em baixo dos pés, não dava para se mexer, até no corredor estava difícil andar. A comissária estava enlouquecida, dizia que o avião não iria daquele jeito, falava com as pessoas, falava no microfone. O pessoal fingia que não escutava, ninguém queria voltar para o check-in, foi uma confusão dos diabos. Só assisti. Tinha posto todas as minhas coisas numa enorme de uma mochila que supunha estar no compartimento apropriado a ela. Para o caso de a perderem e enviarem para outro local que não o meu destino, tinha arrumado uma sacola de mão com uma muda quase completa de roupa. Só não tinha posto calça, porque como estava de jeans agüentaria até Lisboa, era só um dia e meio. A sacola era tão pequena que cabia na poltrona junto de mim e não incomodava ninguém.
Finalmente deram um jeito nas bagagens e lá vou eu rumo a Madri. Ao meu lado, duas velhinhas. Felizes e falantes, a mais nova devia andar pelos 75 anos. Estavam em viagem de férias. De seis em seis meses iam passear porque, segundo a mais nova, era melhor gastarem dinheiro com viagens para elas do que deixá-lo para os outros passearem. As duas adoraram o vinho na hora do jantar e mandaram vir várias vezes. Estavam cada vez mais felizes, e cada vez mais falantes. Somados a idade, o tremor das mãos, o vinho e um pouco de turbulência do avião, eu acabei levando um banho da quarta ou quinta taça da minha vizinha. Uma taça que tinha que estar cheia até à borda, e cujo conteúdo encharcou minha perna. Poderia ter sido na blusa, que eu tinha para trocar, mas pela lei de Murphy que nós de informática tão bem conhecemos, tinha que ser na calça, que empapou e imediatamente começou a cheirar. A solução foi ir ao banheiro, e tentar dar um jeito. Agora imagina ir num banheiro de avião, com todo aquele espaço, tirar a calça e lavar metade de uma perna tentando não molhar o resto. Eu só torcia para que o avião não caísse porque seria difícil a LanChile explicar para a minha família o que eu fazia de calças nas mãos na hora do acidente.
Voltei para a minha poltrona e além de continuar fedendo agora estava molhada, com o humor entrando em colapso. A sorte é que com toda a bebida que tinham tomado, minhas vizinhas desmaiaram até o destino e não me incomodaram mais.
Fora o cheiro de vinho, a partir daí deu tudo certo. Desci em Madri, peguei o trem que me levou até Lisboa. Poupo os detalhes do reencontro com a minha família, mas foi emocionante depois de 12 anos de Brasil. Família é ótima assim - com um oceano de distância. Não dá confusão, só saudades, e os reencontros são perfeitos.
A passagem de ano também foi tranqüila e àqueles que um dia estiverem em Lisboa no dia 31 de dezembro recomendo que vão até a parte antiga perto da meia-noite. Pode ser Alfama, Mouraria, Baixa, ou o Castelo (bairros de Lisboa), de preferência que arrumem vista para o Tejo. É que na passagem do ano os navios no porto, os do estaleiro, os pesqueiros, os cacilheiros (fazem Lisboa-Cacilhas, do outro lado do rio), todos os barcos, tocam as sirenes. É muito lindo ver o Tejo iluminado pela lua e escutar o som meio fantasmagórico dos navios.
Os dias passaram rápido em Lisboa. Foram dias de abastança gastronômica por que, modéstia à parte, como se come bem no meu país! Dia 6, uma sexta-feira, embarco no trem que me levará a Paris. Para honrar a tradição de comilança, minha avó me deu uma cesta de comida que poderia durar umas três viagens de 26 horas até Paris (para uma família) e aquela tinha sido feita só para mim.
Estou sozinha na cabine. O trem pára em Fátima e entra o estereótipo do português - baixinho, entroncado, moreno e de bigode. Emigrante em França, tinha vindo passar as festas e voltava para casa. Não entendia muito bem o que ele falava, era português da Beira (uma província), misturado com termos em francês. Uma certa hora ele se abaixa, põe a mão perto do chão, olha para mim sorrindo e diz: - A xôfagevemdevaixodovanco - Hã ? - Pergunto eu. - A xôfagevemdevaixodovanco - Desculpe, não entendi. - A xôfagevemdevaixodovanco - Ah... (não entendi nada mas sorri para ele, pelo menos parecia amistoso).
Daí a alguns minutos, senti meus pés esquentarem com o calor do aquecimento. Vinha debaixo da poltrona. E aí entendi o que o homenzinho dizia. A chauffage (aquecimento) vem de baixo do banco. Comecei a rir sozinha e ele me olhou com uma cara de "é doida, a rapariga", mas não falou nada. Cheguei em Paris ao anoitecer, domingo, na Gare de Austerlitz.
Deixei a bagagem na estação de trem, num bagageiro, e com uma sacolinha agora com uma muda completa de roupa, fui procurar lugar para dormir minha primeira noite em território francês.
Não adiantava ir até a escola porque domingo não haveria ninguém para me recepcionar. Já tinha sido avisada por uma amiga que tinha me dado um endereço de hotel, barato, decente, com indicações precisas de como lá chegar. Fiz tudo direitinho, o mapa era perfeito, mas quando cheguei lá, por volta das oito da noite, o hotel tinha fechado, mudado, não existia mais naquele lugar.
E agora? Eram oito horas da noite e eu perdida em Paris. Ainda bem que o meu lanche não tinha acabado, não precisava procurar restaurante.
Como sou prevenida, além do mapinha fornecido por minha amiga tinha levado mais nomes e telefones de hotéis. Mas enfrentei alguns problemas. Primeiro, não tinha moedas para usar um telefone público, tinha acabado de trocar o dinheiro e só tinha notas. Segundo, os parisienses não são exatamente amistosos com estrangeiros. E terceiro, quando finalmente consegui telefonar, não entendia nada do que se falava do outro lado da linha. Cadê o francês falado pelos professores da Aliança Francesa de Curitiba?
Inferno, acabei por desistir. Era impossível. Desliguei o telefone e fui andar, quem sabe passaria na frente de algum hotel com cara de barato.
Logo na outra esquina havia uma igreja, e pelo jeito a missa tinha acabado, o povo saía com cara de compenetrado. Vi uma senhora de idade conversando com um rapaz negro na porta. Fui até eles, disse que tinha acabado de chegar, me desculpei pelo meu francês (isto é uma dica, eles ficam mais amigáveis se a gente se declara ignorante) e expliquei o meu caso, pedindo se eles se importariam de telefonar para mim, ver se tinha vaga e pedir o endereço.
Os dois foram super amáveis. A senhora telefonou para dois ou três lugares, acertou tudo e depois de conversar com o rapaz (não entendi nada), disse que ele ia me acompanhar.
Fiquei meio desconfiada, os franceses têm fama de ser antipáticos e eu topava justo com dois simpáticos? Não teve jeito de sair de fininho, me levaram até ao metrô, a senhora foi embora e não consegui me livrar do moço. Ainda por cima quem estava com o endereço era ele, eu nem sabia onde ir. Pensei naquele ditado, (quando é inevitável...), mas mudei de pensamento, esse ditado não era adequado para a minha situação, credo!
O hotel era uma espécie de hotel para juventude, um albergue mais incrementado, maior e muito bonito, novo em folha. Quando entramos no saguão, o rapaz dirigiu-se à recepção, e ficou conversando com o recepcionista. Àquela hora, eu já sabia porque não o entendia muito bem, tínhamos conversado na viagem de metrô. Era estudante de medicina, vinha da Costa do Marfim e falava francês de um jeito diferente. Falam a mesma língua, mas com sotaque e algumas expressões diferentes. O recepcionista também era africano, e de vez em quando eles olhavam para mim e eu entendia alguma coisa da conversa animada deles - Brésil (Brasil), Tiers Monde (Terceiro Mundo), l'argent (dinheiro), e pouco mais.
Eles acertaram lá alguma coisa e o meu guarda-costas me disse que tinha conseguido que eu ficasse pela metade do preço, um desconto, mas que eu teria que sair sete horas da manhã do hotel, se haveria algum problema. Eu disse que não, que não tinha problema, mas perguntei porquê, eu podia pagar o preço normal (tinha visto os preços afixados, não era caro). Não, não que eu não me preocupasse, estava tudo certo, ele conhecia o recepcionista, também era da Costa do Marfim. Deu-me o seu telefone, pediu que eu ligasse se precisasse de qualquer coisa em Paris, e foi-se embora. Parece que foi assim, tchum-tchum, mas para entender tudo isso foram uns bons dez minutos, o francês deles é bem diferente e principalmente para mim, recém-chegada. A verdade é que sobrou uma sensação de que tenho cara de pobre, jeito de pobre, sei lá, alguma coisa de pobre, porque, mesmo não estando nadando em dinheiro, em nenhum momento tinha comentado o assunto e também o caso não era de miséria absoluta.
O quarto era novo, tinha banheiro com chuveiro (nem todos os lugares têm), uma vista bonita. Dormi um sono de quem tinha viajado 26 horas de trem. Antes das sete o telefone tocou, tomei café da manhã, e paguei. Em tempo - os franceses tomam café com leite em tigela, não em xícara, e não comem pão de manhã, só croissant, o que é meio esquisito para nós porque a massa é folhada e meio gordurosa, não combina com sete horas da manhã. Mas em Roma, sê romano, e ali nem tinha opção...
No metrô pensei na historia de ter pago só metade e concluí que pela pressa e ansiedade que o moço da recepção estava para que eu saísse logo, ele deve ter embolsado o meu dinheiro. Antes das sete devia ser para o gerente não chegar. Eu entrei e saí sem o responsável lá. É uma possibilidade, mas jamais saberei, nunca voltei lá para perguntar, claro.
Segunda-feira e nem acredito, estou indo para a escola, em Paris! Minha bagagem continua na estação, só vou buscá-la depois que estiver com a chave do meu apartamento.
Olho a agenda, está lá o nome de quem eu tenho que procurar - Mme Dessagne. Pego o metrô e desta vez saio dos muros de Paris, o campus fica em Cergy, nos arredores. A viagem demora cerca de quarenta minutos, e depois de um trecho (quando sai de Paris), o trem anda na superficie, dá para ir vendo a paisagem.
Chego em Cergy, e pergunto a um senhor onde é a escola. Ele me diz que não tem erro, é muito fácil, é um prédio novo, e apontando a direção diz tout droit (uma tradução literal seria sempre direito, ou seja, reto). Entendi droite, e seguindo na direção que ele apontou, virei à direita e entrei no prédio novo que supus ser o da escola. Fui na recepção e mostrei o nome, Mme Dessagne. Segundo andar. Subi no segundo andar. Mostrei o papel - Terceiro andar. Lá, voltar para o térreo. A recepcionista, muito simpática, volta a me enviar para o segundo andar. Não, não é lá, me mandam para o térreo, devo falar com a recepcionista. Eu parecia barata tonta. A recepcionista na entrada me reconhece e pergunta se sou estrangeira. Sim, então realmente devo ir no segundo andar. Subo no segundo andar. Não tem Mme Dessagne no segundo andar, me mandam para o primeiro, e de lá para o térreo. Volto para a recepcionista, já ficando um pouco irritada. Quando a moça me vê, de novo, ela me perguntou se eu queria ir na Préfecture (não é bem a nossa prefeitura, é mais uma polícia que cuida entre outras coisas dos vistos de estrangeiros).
- Lógico que não, quero ir na ESSEC - Ah bom, me responde ela, por que ali não é a ESSEC, é a Préfecture. O prédio da ESSEC é aquele (aponta um outro pela parede de vidro).
Como tenho passaporte europeu, nunca precisei ir na Préfecture. Mesmo assim, um dia no metrô (algumas semanas ou meses depois) a tal moça me reconheceu e me perguntou como estava indo o curso, e quase morri de vergonha.
A partir daí, não teve mais erro. Achei a Mme Dessagne, escolhi as disciplinas que iria cursar, e os horários. Conheci outros estrangeiros, o Jürgen, o Alexander e a Claudia (alemães), o David (canadense), o Pièrre (iugoslavo naturalizado canadense), o Otávio, o Chico, a Ana (brasileiros), revi a Célia, minha colega da FGV, e mais outros de quem lembro o rosto mas não mais os nomes. Peguei a chave do meu apartamento e fui buscar as minhas coisas na estação de trem.
À noite a Celinha já veterana de Paris (tinha chegado havia uma semana) foi comigo até a Torre Eiffel. Quem chegar em Paris, espere anoitecer para ver a Torre. Ela é ainda mais bonita toda iluminada. E a Torre Eiffel foi um desfecho perfeito para uma chegada no mínimo movimentada.
Dicas de viagem
* Confie nas dicas do seu agente de viagens
* Evite velhinhas, pelo menos maiores de 75 anos
* Ao arrumar a sacola "reserva", coloque uma muda completa de roupa
* Em caso de apuros, procure alguém na saída de uma igreja
* Em francês há uma grande diferença entre tout droit e droite.