Flagrantes: Seja Bem-Vindo, Deep Blue

Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro

Na semana passada tivemos a eletrizante – tanta emoção quanto as melhores novelas da Globo e sem comerciais irritantes no meio – disputa entre Gary Kasparov e Deep Blue. De um lado, um genial enxadrista no vigor da idade e a credencial inconteste de melhor jogador de xadrez, vivo. Do outro, um computador. Todos os jornais e revistas têm descrito o Deep Blue como um imenso e especializado cérebro eletrônico, como se dizia quando eu era criança e havia a ameaça de um computador ensandecido (e provavelmente comunista) declarar guerra à espécie humana. Aqui, a meu ver, reside a falácia maior de toda a questão. Pois todos falam no hardware, descrevem como ele faz 200.000 comparações de jogadas por segundo, de quantos processadores especializados tem etc. e tal. Nem uma palavra sobre o software, esse sim, ouro puro, resultado do que de melhor pode a espécie humana produzir em termos de formalismo, concisão e rigor científicos. Aliás, de nada vale poder analisar 200.000 possibilidades por segundo. Há um episódio verídico que ilustra bem esse fato. Certa vez perguntaram a Ricardo Reti (campeão mundial, grande jogador, exímio na arte de aprontar verdadeiras arapucas nas quais o infeliz oponente era atraído, todo contente, achando que fazia grande negócio...), quantos lances ele precisava analisar para jogar bem. Sua resposta é deliciosa: apenas um. O certo!

Há uma explicação para essa distorção: o hardware é produto comercial, trabalho coletivo, para o qual convergem programas, enfoques e estudos, um monte de gente trabalhando junto, é mais engenharia que arte, e seu fabricante tem o maior interesse, e nesse caso todo o direito, de falar à exaustão sobre ele.

Já o software... bem o software é produção individual, está mais para arte do que para engenharia. É resultado de muitas horas de atividade solitária. Não tem o glamour do hardware, na verdade sequer tem existência física real. É pouco mais que uma abstração. Aliás, é do nosso colega mestre Müller, a antológica definição: Na dúvida entre o que é hardware e o que é software, jogue os dois para cima. O que cair na sua cabeça e causar dor, é hardware.

A equipe de desenvolvimento do Deep Blue é composta por 6 pessoas, sendo sua estrela um ex-aluno de doutorado que propôs, há vários anos atrás um algoritmo mais inteligente para jogar e vencer o xadrêz. Dessas pessoas não se fala, mas são elas que literalmente carregam o deep blue no colo. Sem elas, tal máquina era capaz de perder um jogo de damas de quem aprendeu há duas semanas.

Os especialistas dizem que o xadrez foi de excelente nível. A partida 2, já conhecida como "a partida" daria orgulho a qualquer grande mestre. No fim, já cansado, Kasparov acabou meio que entregando a rapadura, se bem que no intervalo de 2 dias para descanso, Deep mandou avisar que não estava nem um pouco exausto. Queria jogo, o fominha.

Confesso que fiquei dividido na disputa. Horas torcia pelo deep, ou mais especificamente falando, pelos programadores, esperando que mais essa barreira fosse rompida e que tivéssemos a prova inconteste de que a inteligência artificial é uma área séria da ciência, com importantes realizações em seu ativo e, o mais importante, com belas promessas. Horas torcia pelo Kasparov, último defensor da humanidade frente a invasão das máquinas. Nesses momentos vía-me correndo em fuga, diante de um computador enlouquecido gritando: te pego, desgraçado.

Alguns podem dizer que o xadrez é mero divertimento, coisa à-toa, sem importância. Lembro-me a grande difinição do Millôr Fernandes, para quem o xadrez é atividade utilíssima, sendo indicada para todas as pessoas que querem ter mais habilidade de jogar xadrez. Na verdade quem já se sentou diante de um oponente, com a responsabilidade de conduzir seu pequeno exército em direção ao rei adversário, sabe que naquele pequeno retângulo de madeira há mais estratégia, arte, sacanagem, aprontação, virtude e genialidade que em muitos outros locais mais visados e glamouroso (a ONU ou a OTAN, só para ficar nos mais famosos).

É uma pena que nossas escolas, não arrumem um espacinho na sobrecarregada agenda dos alunos para incentivar o xadrez. Pois este, é uma das poucas coisas que, ao mesmo tempo que auxilia o treinamento do raciocínio abstrato e o desenvolvimento de estratégias sobre um conjunto pequeno e estável de regras, é divertido. A boa nova do xadrez é que a lição de casa não precisa ser chata, aborrecida e cinzenta para produzir resultados. É possível desenvolver-se divertindo-se... pensando bem, acho que é por isso que as escolas ignoram solenemente o xadrez...

Para os que desprezam o xadrez, vale a lembrança de que ele já foi chamado de drosóphila melanogaster da inteligência artificial. A drosóphila, é a mosca, esse ser abjeto que nos irrita, aquela da sopa do Raul Seixas. É difícil achar que tal ser tenha alguma utilidade, mas ele é uma dádiva divina para os geneticistas. Seus cromossomos são enormes, facilmente coráveis e estudáveis. Tem um ciclo reprodutivo de 11 dias, come qualquer coisa, é barata e facilmente encontrável. Portanto, qualquer cientista que estude a genética há de agradecer às moscas. Quem se interessa, ainda que de leve, pela inteligência artificial, tem que ser grato pela existência do xadrez.

E, para aqueles que acham ser um jogo bobo, vamos a alguns números: Uma partida média tem cerca de 40 movimentos de cada lado. 80 no total. A cada jogada, há cerca de 25 respostas possíveis. Assim, se fôssemos escrever numa tabela todos os jogos de xadrez possíveis de existirem, essa tabela teria um numero bem grandinho de elementos. Vejamos: no primeiro nível, são 25 possibilidades. Cada uma delas dá origem a outras 25, o que significa 625 possibilidades no segundo lance. No terceiro, são 15.625. No quarto; 390.625, no quinto, 9.765.625. Lá pelo lance 60 (na verdade, no lance 30 de cada jogador) as combinações já são: 7.523.310.000.000.000.000.000 .000.000.000.000. 000.000.000.000. 000.000.000.000. 000.000.000.000.000.000.000.000.

Só para comparação, estimam-se existirem "apenas" 1080 elétrons no universo. Esse número de combinações é atingido lá pela altura da jogada 55. As demais ficam por conta do lucro.

Para encerrar este artigo, fica a reflexão. É falsa a afirmativa de que o desafio foi entre homem e máquina. Foi na verdade entre o Kasparov e os 6 programadores. E, lastimo dizer ao campeão mundial, que a turma da informática levou mais essa fatura...