Flagrantes: Um ratão fedido

Autor: Pedro Luís Kantek Garcia Navarro

 

Colega nossa, há mais de vinte anos, precisou, durante um bom período, viajar toda semana para a cidade de Passo Fundo. O programa era assim: saída na sexta às 9 da noite com a chegada no sábado pela manhã. Trabalho lá no sul durante o sábado e o domingo e retorno no domingo à noite, pronta para pegar no pesado na segunda de manhã, aqui na casa.

Como era muito cansativo e não havia ônibus leito na viagem, comprava duas poltronas juntas, levantava o braço separador, abaixava os encostos e se esparramava na cama assim formada. Só faltava botar lençol e travesseiro.

Em geral a viagem transcorria bem e sem problemas, mas essas coisas não podem acontecer durante muito tempo sem nada marcante pra contar para os netos (ou para os leitores do Bate Byte, é quase a mesma coisa).

Numa noite, fria como uma geladeira, a estrada deserta, o vento batendo firme nas árvores, profundamente adormecida, nossa personagem começa a sonhar com carniça. Vê os urubus voando acompanhando o ônibus, cada vez mais perto, voando a braços dados com ratões voadores, que no sonho tudo é possível, a fedentina aumentando, até que num solavanco maior, não dá para continuar sonhando, há que se acordar.

Procurando localizar a origem da fetidez e, ainda naquele limbo a meio caminho entre o sono e a vigília, olhando para o chão do ônibus, localizou um ratão lustroso, peludo, cheio de bigodes, encarando-a. Tamanho susto a acordou. Adeus sono, que ficar cara a cara com um bicho nojento desses é para quem tem estômago firme.

Bastou acordar para perceber o engano: não era um ratão, apenas um sapato velho, desbeiçado, com os cordões caídos (os bigodes), que se movia graças aos buracos da estrada e por fim, mas não menos importante, malcheiroso como os porões de Satanás.

Um bacana qualquer no ônibus, resolvendo se pôr mais à vontade, tirou os sapatos e caiu no sono, pois afinal já devia estar acostumado aos odores. Sobrou para nossa colega descascar o abacaxi. O que fazer? Não teve dúvida: abriu a janela e despejou o ratão, digo o sapato, janela afora. Devia estar na Constituição Federal: a ninguém deve ser exigido agüentar os odores alheios. Aproveitando a janela aberta e pressentindo que devia haver outro por ali, afinal, os sapatos como as desgraças sempre vêm aos pares, procurou por baixo dos bancos até achar o segundo. Que teve o mesmo fim do primeiro. Tudo resolvido, foi possível voltar a dormir.

O divertido, na chegada, foi ver um sujeito, bastante incomodado, engravatado e tudo, sair do ônibus e entrar num táxi descalço como veio ao mundo.