PÚBLICO E PRIVADO: O SURGIMENTO E A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS

Autor: Maurício Stunitz Cruz - GES


Em um momento em que as formas de relacionamento entre o Estado e a Sociedade é um dos temas relevantes no debate político do país, parece oportuno que sejam apresentados e explorados mais a fundo os conceitos de público e privado, bem como a evolução destes conceitos ao longo da história da cultura ocidental.

Caso se pergunte a uma pessoa qualquer "O que é privado?" ela provavelmente responderá: "Ora, é o que não é público!". Esta mesma pessoa, perguntada então sobre o que é público, responderá: "É o que não é privado". Apesar de parecerem engraçadas as respostas dessa pessoa, ela estará coberta de razão, pois os conceitos de público e privado, exclusivos e exaustivos, oferecem entre si uma delimitação recíproca. Você poderá estar pensando: "Bom, até aí nenhuma novidade, isto eu já sabia!''. O que pouca gente sabe, entretanto, é que esta delimitação não é estática e que, pelo contrário, as fronteiras entre o que é público e o que é privado já se movimentaram bastante nos últimos três mil anos.

Os termos público e privado surgem no Império Romano e se referem, respectivamente, ao Direito Público e ao Direito Privado que são as pedras fundamentais do Direito Romano, que é, por sua vez, a pedra fundamental de todo o Direito da civilização ocidental.

Porém, a conceituação do que seja público remonta à civilização grega. Na pólis grega o espaço público é a esfera de ação do cidadão, é o espaço onde se compete por reconhecimento, precedência e aclamação de idéias. É nesse ambiente, com condições de homogeneidade moral e política e de ausência de anonimato, que existe a perseguição da excelência entre os iguais. Por oposição, o espaço privado é onde se dão as relações entre os que não são cidadãos, os comerciantes, as mulheres, os escravos.

Pode-se perceber que na sua origem o termo público remete à esfera da coletividade e ao exercício do poder, à sociedade dos iguais. Em contrapartida, o privado se relaciona com as esferas particulares, à sociedade dos desiguais.

Com o surgimento dos estados nacionais modernos no final do século XV, essas relações sofrem significativas transformações. O exercício do poder pelo chefe de Estado se dá através da imposição de normas (leis) que definem o comportamento do súdito ou do cidadão. Estabelecem-se, então, relações coercitivas entre o rei e o súdito, ou entre o ministro e o cidadão. Como conseqüência, o espaço público deixa de ser a arena onde se dão as relações entre iguais, como na pólis grega, e passa a ser o espaço onde ocorrem as relações entre desiguais. O espaço onde o governo "impõe" regulações aos governados.

Concorrentemente à consolidação do Estado, ocorre o surgimento do Mercado. Se o que regula as relações entre o Estado e a sociedade são as leis, o que regula as relações entre os participantes do mercado é o contrato. Segundo Bobbio, esta é "a forma típica com que indivíduos singulares regulam suas relações no estado da natureza, isto é, no estado onde não existe ainda o poder público". Ou seja, onde não se faz sentir a ação do Estado. Nesse sentido, a esfera onde se dão as relações entre iguais, pois um contrato só existe com a anuência de todos os participantes, é agora a sociedade dos iguais, a sociedade de mercado, em última instância, a esfera Privada. Nesse contexto é que se inicia a associação entre o Estado e o conceito de público, pois o espaço público agora passa a ser pensado como o espaço de representação política, onde se dá a interação entre o governante e a sociedade. Surge, também, nesse momento, a dicotomia entre bens públicos e bens privados, sendo estes bens rivais com alocação ótima no mercado e os primeiros bens não rivais que visam suprir as falhas do mercado e que são fruto da escolha pública.

Com a crise vivida pelo Capitalismo no final do século XIX e que culminou com a grande depressão econômica mundial vivida a partir de 1929, a atuação do Estado na produção de bens públicos, sejam produtos ou serviços, se intensificou.

Chega-se então aos nossos dias, onde o conceito de privado nos remete às questões do mercado e da privacidade do indivíduo e, por outro lado, o público passa a ser identificado com o Estado e o espaço onde ocorrem as relações políticas da sociedade. Porém, o atual estado das coisas nos permite perceber uma série de questões não resolvidas, sejam elas pertinentes à esfera econômica ou à esfera social. Como estão postas atualmente, as grandes dicotomias Estado e sociedade, governo e sociedade de mercado, lei e contrato, justiça comunitativa (a do mercado) e justiça distributiva (a ligada ao Estado) e, em resumo, público e privado, não atendem mais às demandas de uma sociedade complexa como a nossa. Faz-se necessário, portanto, que sejam propostas novas formas de interação entre esses diversos níveis de atuação da sociedade, de forma que sejam atendidas as demandas e respondidas as grandes questões sociais, políticas e econômicas deste final de século. Mas esse é assunto para outro artigo.

Referências bibliográficas:

1. BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. São Paulo: Paz e Terra. 1992.

2. DANIEL, Celso. Avaliação e implementação de projetos em serviços públicos. São Paulo, 1994. (Notas de aula do curso de Mestrado de Administração Pública da EAESP-FGV).

3. FARAH, Marta. Relações entre os setores público e privado. São Paulo, 1994. (Notas de aula do curso de Mestrado de Administração Pública da EAESP-FGV).